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Publicado: 30 Dezembro 2020
Em uma época cheia de incertezas, dúvidas e questionamentos, é normal que ideias sejam debatidas e abordadas sob vários ângulos, gerando formas diferentes de se enxergar aspectos a respeito de um mesmo tema. Mas diante de um mundo "conectado" e que proporciona fácil acesso a inúmeras fontes de informação, é imperioso que qualquer pessoa, ainda mais um filósofo, antes de escrever sobre algo, se debruce sobre o tema que pretende abordar, o que claramente, não parece ser o caso do autor do texto, "Quem crê em conspirações acha que é Einstein, mas não come ninguém", publicado na Folha de São Paulo em 27 de dezembro/20, o qual aliás, dispensa comentários quanto ao título.
Logo no primeiro parágrafo, onde claramente, Pondé critica o posicionamento de "pessoas anti vacinas", os que "acreditam em teorias da conspiração" e os veganos, ele finaliza alertando o leitor: "Nunca substime a estupidez humana, pois ela pode ser mortal". É interessante perceber a completa falta de informação do filósofo ao incluir os veganos em uma afirmação que aponta, de forma acusatória, a letalidade de determinadas posições. Segundo a ONU, em um de seus relatórios, ainda em 2013, existe um risco crescente do surgimento de inúmeros vírus com potencial pandêmico em sistemas de produção e exploração animal, o que de fato ocorreu e vem ocorrendo com as conhecidas gripes suína e aviária, a doença da vaca louca e, mais recentemente, com o coronavírus, o qual surgiu também, em ambientes de criação e comércio de animais para consumo humano na Ásia. A não ser que o próprio autor da coluna queira se integrar à tribo dos "negacionistas", é mais do que clara, propositalmente não citada no texto do filósofo, a letalidade do hábito de mantermos os animais sob a mira de nossos garfos e facas, negando aos mesmos o direito a viverem suas vidas sem o risco de virarem produtos, seja no prato, no armário em forma de roupas ou quaisquer outros tipos de exploração que impomos aos mesmos. Como dito, a informação está ao alcance de todos em nosso mundo conectado, basta acessá-la, ou melhor, querer acessá-la.
Na sequência, Pondé, de forma irônica, diz que "O mundo será vegano. Como consequência, podemos imaginar como será o mundo, já que veganos, em geral, são pessoas antissociais, autoritárias e incapazes de qualquer compromisso além de amar as rúculas, as alfaces e frutas que caem livremente das árvores."É triste, pra usar um adjetivo mais ameno, ler tal frase escrita por um filósofo. Em uma clara falta de percepção quanto ao que se refere o movimento, ele cria uma conexão forçada entre pessoas veganas e o autoritarismo, como se a busca por uma relação mais respeitosa para com os animais, a natureza e nossa própria saúde fosse algo impositivo, esquecendo que todos os veganos e não veganos vivem sob o peso de uma herança cultural, essa sim, autoritária e impositiva, que julga aqueles que, de alguma forma, questionam nossa relação contraditória diante da questão animal, de um lado aprovando leis contra maus tratos a alguns animais e por outro, liberando a exploração e morte de outros bilhões e bilhões para povoarem, em forma de pedaços, o prato de uma população doente, também, mas não só por isso, por conta daquilo que comem. Quanto ao citado "antissocial", ainda que tal afirmação seja sem base científica, pode ser que alguns veganos, e apenas alguns, diante do dilema de enfrentar almoços regados a partes de animais mortos para, muitas vezes, celebrar a paz, o amor e a vida - como é o caso do período de festas do fim de ano - acabam evitando tais reuniões de familiares e amigos, não porque são antissociais, mas talvez pelo fato do autoritarismo radical de uma herança cultural perversa com aqueles que não a aceitam, não admite comemorações sem a carne de bois, porcos ou aves na mesa.
Seguindo em seu triste texto, ele continua afirmando que. "A comida virou um surto. Nunca confie em pessoas puras. A pureza é antissocial". Nesse ponto Pondé apresenta seus dois maiores equívocos: ele credita o movimento vegano a um movimento pela pureza alimentar, relacionado a um pseudo "heroísmo vegano" em acabar com a violência na natureza. Ainda que a alimentação seja o ponto mais abordado em rodas de conversas sobre o veganismo, e isso é explicado de forma a não restar dúvidas: em torno de 98% da exploração animal no mundo recae sobre os animais de produção, aqueles que irão fazer parte do cardápio de uma parcela da população. Ela, a alimentação em si, já é uma consequência da proposta central do veganismo. Pra melhor entender o que isso significa, basta acessar o site da Vegan Society, instituição que fundou o movimento vegano moderno: "um modo de vida que busca excluir, na medida do possível e do praticável, todas as formas de exploração e crueldade contra os animais". Logo, facilmente se percebe que a postura em relação à alimentação é uma consequência imediata quanto a essa busca, pelo que pode-se chamar de amplo respeito aos animais. Ademais, ainda que a natureza seja, segundo o próprio Pondé já afirmou em outras oportunidades, a "primeira estrutura a fabricar violência no mundo", não devemos esquecer de nossa própria natureza, aquilo que nos faz humanos, que nos caracteriza como espécie, que é a nossa capacidade de análise crítica e, baseados nessas análises, fazermos escolhas, mudamos nosso entorno, criando uma nova relação entre nós mesmos e o restante do planeta, não mais pautados na "violência da natureza", mas por conceitos éticos e bem fundamentados. Rotular de puros, usando de forma pejorativa o termo, aqueles que querem estender a compaixão e o respeito para com os animais, e por isso não serem pessoas confiáveis é o mesmo que dizer que aquele que evita uma briga de trânsito está sendo puro, e por isso, não é merecedor de confiança, segundo a própria "régua" do autor.
O texto continua e passa por trechos que mais parecem escritos por um autor de novela mexicana, criando ilusões e contradições simples de serem identificadas como a que joga uma ponta de dúvida no fato de empresas começarem a investir no mercado de produtos veganos, como se isso fosse um problema diante do avassalador investimento e "big business" acerca da pecuária, curtumes, indústria da pele, do turismo exploratório e tantos outros que têm em seu centro o uso e morte de animais. Ou mesmo quando o filósofo "se veste" de nutricionista e demonstra sua preocupação com a falta de nutrientes de uma hipotética sociedade vegana (futuro vegano), esquecendo-se de inúmeros pareceres de Instituições de nutricionistas mundo afora que atestam a viabilidade e benefícios de uma alimentação à base de vegetais - como a Academia Americana de Nutrição e Dietética - além de fingir não saber dos inúmeros problemas que a alimentação centrada na carne e derivados provoca, sendo responsável por boa parte dos gastos públicos com tratamentos de doenças como problemas cardíacos, AVCs e cânceres, pressão alta, diabetes entre outras responsáveis por boa parte dos óbitos no mundo. Mas não termina aqui, o texto ainda conta com trechos melancólicos como a de que veganos são contra se ter filhos ou mesmo a prática de sexo.
Mais do que um texto equivocado, a coluna denunciou mitos e preconceitos comuns a respeito do movimento vegano. Seja lá a qual tribo você pertence, se não pertence a tribo nenhuma, se torce pra um time ou outro, ou não gosta de futebol, ser vegano é algo mais simples e ao seu alcance do que parece. Afinal de contas, respeitar amplamente os animais é algo que todos nós concordamos, precisamos apenas trilhar uma jornada rumo a um mundo mais compassivo, justo e benevolente, para todos, inclusive para filósofos, nutricionistas, médicos, engenheiros... e claro, para todos os animais.
Ricardo Laurino - Presidente da SVB